sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Por que ração não é comida, e o que isso tem a ver com uma alimentação saudável?


Fonte:Pinterest.com

Neste mês de outubro, os jornais e outras mídias jornalísticas informaram sobre a nova proposta de ação pública para o combate da fome em São Paulo: a liofilização de sobras alimentares para distribuição a populações pobres, em forma de "farinata" ou, conforme denominação dada ao produto, "ração humana". Esse tema possibilita reflexões sobre as dimensões sociais, políticas econômicas e culturais conferidas ao comer. Não abordei aqui reflexões sobre a dimensão do comer no âmbito político, porque aí teríamos que falar sobre corrupção, sobre beneficiamento de elites etc, e não será o objetivo desta postagem. Então, me ative à possibilidade de reflexão sobre a dimensão cultural do comer.

Vivemos em uma época em que a saúde é tida como um bem de consumo. Busca-se saúde como se fosse um produto comprável. Comprável através de dietas, de remédios, de exercícios extenuantes e de alimentos milagrosos. Busca-se saúde desconsiderando que esta é um percurso e não um final, e que sendo percurso inclui fatores diversos e complexos. Saúde não é produto, é um processo e, enquanto processo, dinâmico. A noção de saúde apresenta caráter diverso e subjetivo, mas de maneira geral está intricada à ideia de viver bem. Para que se admita, portanto, a construção desse percurso saúde, torna-se necessário considerar a multiplicidade de possibilidades sobre o que é viver bem. Para isso, devemos considerar crenças, valores morais, olhar cultural, entre outros aspectos.

O comer bem é um ato emblemático e esperado dentro da construção do processo de saúde, porém apresenta-se também marcadamente enquanto múltiplo e complexo - no que lhe poderia caracterizar como ideal ou almejável. Isto, porque nem tudo o que alimenta é comível. Nem tudo o que é alimento, portanto, é comida.

Alimento é definido para a Ciência da Nutrição enquanto tudo aquilo que é capaz de nutrir, oferecendo nutrientes essenciais à saúde de um indivíduo. Contudo, a noção do que é comida alcança além da ideia daquilo que é capaz de nutrir o corpo, alcançando a ideia de ser  aceitável culturalmente para ser escolhido e comido por uma população ou pessoa. A noção de comida abrange muito mais o caráter de multiplicidade e complexidade do processo de saúde do que a noção de alimento em si, uma vez que a primeira considera o emocional, a experiência de vida, o cultural.

Nesse sentido, podemos refletir que alimento pode nutrir, mas não necessariamente conferir consciência de viver bem, tão pouco consciência de dignidade. Ter acesso a comida, por outro lado, está mais próximo de conferir noção de dignidade, de viver bem e de saúde. Ter acesso a comida é ter acesso ao alimento aceito culturalmente, prazeroso, capaz de oferecer nutrientes e a sinergia agradável de paladar, olfato, visão e tato e promovendo sensação de felicidade e viver bem.

Muitas vezes, pacientes com Esclerose Múltipla procuram-me perguntando o que devem comer para serem mais saudáveis, chegando até mim, contudo, com a expectativa que eu fale de alimentos isolados, prescritos como se fossem remédios. Quando falamos de saúde, de viver bem e de dignidade, é necessário falarmos mais do que de alimentos e nutrientes. É necessário falarmos de comida e de momentos prazerosos com a comida. É pensar no que e no quanto você come, mas também no como você come, no com quem, no onde você come.

Comida também é pasto, como diria Titãs, mas entendamos finalmente que comida é sobretudo arte, é fazer amor, é desejo, é balé.

Fernanda Sabatini

Nutricionista






Nutricionista graduada pela Universidade Federal de São Paulo. Membro do Grupo de pesquisa em alimentação e cultura (GPAC) e mestre em Ciência pela USP - Universidade de São Paulo.





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