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Neste mês de outubro, os jornais e outras
mídias jornalísticas informaram sobre a nova proposta de ação pública para o
combate da fome em São Paulo: a liofilização de sobras alimentares para distribuição
a populações pobres, em forma de "farinata" ou, conforme denominação
dada ao produto, "ração humana". Esse tema possibilita reflexões
sobre as dimensões sociais, políticas econômicas e culturais conferidas ao
comer. Não abordei aqui reflexões sobre a dimensão do comer no âmbito político,
porque aí teríamos que falar sobre corrupção, sobre beneficiamento de elites
etc, e não será o objetivo desta postagem. Então, me ative à possibilidade de
reflexão sobre a dimensão cultural do comer.
Vivemos em uma época em que a saúde é tida como
um bem de consumo. Busca-se saúde como se fosse um produto comprável. Comprável
através de dietas, de remédios, de exercícios extenuantes e de alimentos
milagrosos. Busca-se saúde desconsiderando que esta é um percurso e não um
final, e que sendo percurso inclui fatores diversos e complexos. Saúde não é
produto, é um processo e, enquanto processo, dinâmico. A noção de saúde
apresenta caráter diverso e subjetivo, mas de maneira geral está intricada à
ideia de viver bem. Para que se admita, portanto, a construção desse percurso
saúde, torna-se necessário considerar a multiplicidade de possibilidades sobre
o que é viver bem. Para isso, devemos considerar crenças, valores morais, olhar
cultural, entre outros aspectos.
O comer bem é um ato emblemático e esperado
dentro da construção do processo de saúde, porém apresenta-se também
marcadamente enquanto múltiplo e complexo - no que lhe poderia caracterizar
como ideal ou almejável. Isto, porque nem tudo o que alimenta é comível. Nem
tudo o que é alimento, portanto, é comida.
Alimento é definido para a Ciência da Nutrição
enquanto tudo aquilo que é capaz de nutrir, oferecendo nutrientes essenciais à
saúde de um indivíduo. Contudo, a noção do que é comida alcança além da ideia
daquilo que é capaz de nutrir o corpo, alcançando a ideia de ser aceitável culturalmente para ser escolhido e
comido por uma população ou pessoa. A noção de comida abrange muito mais o
caráter de multiplicidade e complexidade do processo de saúde do que a noção de
alimento em si, uma vez que a primeira considera o emocional, a experiência de
vida, o cultural.
Nesse sentido, podemos refletir que alimento
pode nutrir, mas não necessariamente conferir consciência de viver bem, tão
pouco consciência de dignidade. Ter acesso a comida, por outro lado, está mais
próximo de conferir noção de dignidade, de viver bem e de saúde. Ter acesso a
comida é ter acesso ao alimento aceito culturalmente, prazeroso, capaz de
oferecer nutrientes e a sinergia agradável de paladar, olfato, visão e tato e
promovendo sensação de felicidade e viver bem.
Muitas vezes, pacientes com Esclerose Múltipla
procuram-me perguntando o que devem comer para serem mais saudáveis, chegando
até mim, contudo, com a expectativa que eu fale de alimentos isolados,
prescritos como se fossem remédios. Quando falamos de saúde, de viver bem e de
dignidade, é necessário falarmos mais do que de alimentos e nutrientes. É
necessário falarmos de comida e de momentos prazerosos com a comida. É pensar
no que e no quanto você come, mas também no como você come, no com quem, no
onde você come.
Comida também é pasto, como diria Titãs, mas entendamos
finalmente que comida é sobretudo arte, é fazer amor, é desejo, é balé.
Fernanda
Sabatini
Nutricionista
Nutricionista graduada pela Universidade Federal de São Paulo. Membro do Grupo de pesquisa em alimentação e cultura (GPAC) e mestre em Ciência pela USP - Universidade de São Paulo.
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