segunda-feira, 21 de março de 2016

As deficiências silenciosas...


Fonte: Suzete Zanatta


Sou fisioterapeuta há trinta e três anos. Nesse tempo, conciliei atuação clínica com a atuação docente, e, nessas duas interfaces profissionais, as disfunções neurológicas sempre ocuparam espaço de enorme importância. Estar tão próximo às pessoas que vivem processos de adoecimento, e experimentam, a partir dai, uma mudança radical nas suas vidas, influenciou não só meu percurso profissional, mas despertou em mim novas formas de compreender e de significar o corpo, as potencialidades e as "deficiências" humanas.

A esclerose múltipla é uma dessas importantes situações que nos convida a repensar crenças ou dogmas, muitas vezes camuflados por discursos pseudocientíficos. Explico: muitas vezes os sintomas iniciais são sutis, pouco específicos, subjetivos, invisíveis. Não posso precisar quantas vezes, pessoas com diagnóstico de EM vieram me procurar e, na sua história, referiram ter realizado inúmeros diferentes tratamentos para os mais variados falsos diagnósticos. E não é de se surpreender: tonturas que surgem de vez em quando e logo desaparecem, a sensação de visão dupla em um dia de enorme cansaço, uma sensação de formigamento fugaz, uma sensação subjetiva de estar mais desequilibrado... E, afinal, quem nunca sentiu isso? E de repente um sintoma mais forte, uma perda mais "concreta", uma ressonância magnética, um diagnóstico... E o mundo anteriormente experimentado pela pessoa se modifica profundamente, surgindo, no cenário da vida da pessoa, a Esclerose Múltipla. Não há como fugir disso.

No entanto, apesar das importantes mudanças que a Esclerose Múltipla impõe à vida da pessoa e da sua reconhecida gravidade, muitos casos não são reconhecidos como "deficiência", o que as impede de ter acesso, por exemplo, à reserva de vagas no ambiente de trabalho, que busca dar igualdade de condições na competição entre os candidatos a um cargo. Meu objetivo aqui não é discutir a lei. Antes, meu desejo é convidar à reflexão sobre o que se entende como "deficiência".

Por certo, há muita informação em torno da Esclerose Múltipla e o manejo clínico pode contar com muita informação científica que auxilia o manejo desse evento. No entanto, há aspectos sutis, subliminares, que são menos abordados. Muito porque ainda pensamos o corpo e a sua motricidade como eventos exclusivamente biológicos. E é aqui que delibero tomar um caminho diferente de reflexão. O corpo, seus movimentos e sua expressão estão submetidos aos valores sociais vigentes dentro de cada grupo cultural, e portanto, cada tempo e cada lugar "constroem" modelos de corpo, de eficiência, de beleza que respondam às normativas vigentes. O corpo é, portanto, suporte de signos sociais e projetam o grau e o "lugar" de pertencimento. O corpo, e os ideais a ele atrelados, revelam uma sociedade e suas dinâmicas.

Desse modo, valores que pelo senso comum são julgados absolutos como "belo", "feio", "adequado", "inadequado", "saudável", "doente" são, mais do que consequentes de uma perspectiva orgânica ou biológica, resultantes de uma conjuntura. Eficiência ou deficiência, normalidade ou anormalidade são noções repletas de significados econômicos, políticos, morais, religiosos.  São conceitos que carecem de nitidez, justamente porque são interpretados através de parâmetros ideológicos.

A incapacidade ou a deficiência de uma pessoa é determinada não somente em relação aos outros, mas em relação a si mesma, em relação à um estágio anterior vivenciado pela pessoa. A deficiência ou incapacidade remete à limitação do corpo, mas também à vulnerabilidade, às ameaças, aos obstáculos. Quando pensamos nos conceitos norteadores das ações que se pretendem inclusivas, esbarramos justamente na fragilidade dos parâmetros, porque estamos lidando com subjetividades. Se falamos em equiparação de oportunidades devemos levar em conta não só o potencial contido no próprio sujeito, mas também as condições externas a que ele está submetido e na interação daí resultante. Pessoas diferentes submetidas às mesmas condições podem atingir resultados distintos.

O corpo na sociedade capitalista está associado à capacidade adaptativa, à velocidade, à flexibilidade, enfim, aos valores impostos pela economia globalizada e internacionalizada. Ousadia e otimização do tempo são valores "supremos", nos quais as palavras "cansaço" ou "fadiga" foram proscritas. O mercado de trabalho busca os "incansáveis". E é a partir dessa perspectiva que gostaria de convidá-los a refletir.

A EM pode se manifestar de forma subjetiva, mas profundamente limitante. Um dos sintomas que perturba profundamente a vida da pessoa é a fadiga. Não podemos vê-la, é verdade. Mas quem vivencia esta situação sabe o quanto isso funciona como impeditivo. Menos em relação à atuação profissional propriamente dita, mas profundamente limitante em relação à velocidade que o mundo do trabalho contemporâneo espera. Uma deficiência, silenciosa, mas profunda.

Nesse momento, meu objetivo é introduzir a reflexão sobre os limites impostos pela EM, não só durante os surtos ou quando sequelas significativas tornam-se visíveis. Quero convidar à reflexão sobre os impactos dos sinais surdos, silenciosos, que impactam o cotidiano das pessoas que vivenciam a EM. E de como esses sinais ferem a imagem do corpo, a autoimagem, colocando-as em situação de desvantagem. São muitas as interfaces, é preciso conhecê-las.

Um abraço!


Bete Guazzelli


Um comentário:

  1. Olá Bete!

    Foi perfeita na colocação sobre a invisibilidade que, muitas vezes, acompanha o paciente de tantas doenças. Parabéns!

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