Fonte: Suzete Zanatta |
Sou fisioterapeuta há trinta e três anos. Nesse tempo, conciliei atuação clínica com a atuação docente, e, nessas duas interfaces profissionais, as disfunções neurológicas sempre ocuparam espaço de enorme importância. Estar tão próximo às pessoas que vivem processos de adoecimento, e experimentam, a partir dai, uma mudança radical nas suas vidas, influenciou não só meu percurso profissional, mas despertou em mim novas formas de compreender e de significar o corpo, as potencialidades e as "deficiências" humanas.
A esclerose múltipla é uma
dessas importantes situações que nos convida a repensar crenças ou dogmas,
muitas vezes camuflados por discursos pseudocientíficos. Explico: muitas vezes
os sintomas iniciais são sutis, pouco específicos, subjetivos, invisíveis. Não
posso precisar quantas vezes, pessoas com diagnóstico de EM vieram me procurar
e, na sua história, referiram ter realizado inúmeros diferentes tratamentos para
os mais variados falsos diagnósticos. E não é de se surpreender: tonturas que
surgem de vez em quando e logo desaparecem, a sensação de visão dupla em um dia
de enorme cansaço, uma sensação de formigamento fugaz, uma sensação subjetiva
de estar mais desequilibrado... E, afinal, quem nunca sentiu isso? E de repente
um sintoma mais forte, uma perda mais "concreta", uma ressonância
magnética, um diagnóstico... E o mundo anteriormente experimentado pela pessoa
se modifica profundamente, surgindo, no cenário da vida da pessoa, a Esclerose
Múltipla. Não há como fugir disso.
No entanto, apesar das
importantes mudanças que a Esclerose Múltipla impõe à vida da pessoa e da sua
reconhecida gravidade, muitos casos não são reconhecidos como
"deficiência", o que as impede de ter acesso, por exemplo, à reserva de vagas no ambiente de trabalho, que busca
dar igualdade de condições na competição entre os candidatos a um cargo.
Meu objetivo aqui não é discutir a lei. Antes, meu desejo é convidar à reflexão
sobre o que se entende como "deficiência".
Por certo, há muita informação
em torno da Esclerose Múltipla e o manejo clínico pode contar com muita
informação científica que auxilia o manejo desse evento. No entanto, há
aspectos sutis, subliminares, que são menos abordados. Muito porque ainda
pensamos o corpo e a sua motricidade como eventos exclusivamente biológicos. E
é aqui que delibero tomar um caminho diferente de reflexão. O corpo, seus
movimentos e sua expressão estão submetidos aos valores sociais vigentes dentro
de cada grupo cultural, e portanto, cada tempo e cada lugar "constroem"
modelos de corpo, de eficiência, de beleza que respondam às normativas
vigentes. O corpo é, portanto, suporte de signos sociais e projetam o grau e o
"lugar" de pertencimento. O corpo, e os ideais a ele atrelados,
revelam uma sociedade e suas dinâmicas.
Desse modo, valores que pelo
senso comum são julgados absolutos como "belo", "feio",
"adequado", "inadequado", "saudável",
"doente" são, mais do que consequentes de uma perspectiva orgânica ou
biológica, resultantes de uma conjuntura. Eficiência ou deficiência,
normalidade ou anormalidade são noções repletas de significados econômicos,
políticos, morais, religiosos. São
conceitos que carecem de nitidez, justamente porque são interpretados através
de parâmetros ideológicos.
A incapacidade ou a
deficiência de uma pessoa é determinada não somente em relação aos outros, mas
em relação a si mesma, em relação à um estágio anterior vivenciado pela pessoa.
A deficiência ou incapacidade remete à limitação do corpo, mas também à
vulnerabilidade, às ameaças, aos obstáculos. Quando pensamos nos conceitos
norteadores das ações que se pretendem inclusivas, esbarramos justamente na
fragilidade dos parâmetros, porque estamos lidando com subjetividades. Se
falamos em equiparação de oportunidades devemos levar em conta não só o
potencial contido no próprio sujeito, mas também as condições externas a que
ele está submetido e na interação daí resultante. Pessoas diferentes submetidas
às mesmas condições podem atingir resultados distintos.
O corpo na sociedade capitalista
está associado à capacidade adaptativa, à velocidade, à flexibilidade, enfim,
aos valores impostos pela economia globalizada e internacionalizada. Ousadia e
otimização do tempo são valores "supremos", nos quais as palavras
"cansaço" ou "fadiga" foram proscritas. O mercado de
trabalho busca os "incansáveis". E é a partir dessa perspectiva que
gostaria de convidá-los a refletir.
A EM pode se manifestar de
forma subjetiva, mas profundamente limitante. Um dos sintomas que perturba
profundamente a vida da pessoa é a fadiga. Não podemos vê-la, é verdade. Mas
quem vivencia esta situação sabe o quanto isso funciona como impeditivo. Menos
em relação à atuação profissional propriamente dita, mas profundamente
limitante em relação à velocidade que o mundo do trabalho contemporâneo espera.
Uma deficiência, silenciosa, mas profunda.
Nesse momento, meu objetivo é
introduzir a reflexão sobre os limites impostos pela EM, não só durante os
surtos ou quando sequelas significativas tornam-se visíveis. Quero convidar à reflexão
sobre os impactos dos sinais surdos, silenciosos, que impactam o cotidiano das
pessoas que vivenciam a EM. E de como esses sinais ferem a imagem do corpo, a
autoimagem, colocando-as em situação de desvantagem. São muitas as interfaces,
é preciso conhecê-las.
Um abraço!
Bete Guazzelli
Olá Bete!
ResponderExcluirFoi perfeita na colocação sobre a invisibilidade que, muitas vezes, acompanha o paciente de tantas doenças. Parabéns!